Colisão de Valores na Interpretação dos Critérios
de Habilitação no Programa Habitacional do Distrito Federal da Lei 3877/06.
A política
habitacional do Distrito Federal que é regida pela Lei Distrital nº 3.877, de
26 de junho de 2006, e executada pela CODHAB, tem sido questionada na justiça
por pessoas insatisfeitas, que não preenchem os critérios legais de
habilitação, sob argumentos infundados e inconsistentes de que o direito a
moradia é direito constitucional e, portanto, obrigação exclusiva do Estado.
Essas pessoas mesmo não preenchendo os requisitos legais de habilitação tentam
burlar o sistema com práticas ilegais como realizar dupla inscrição, inserir
dados falsos no cadastro para obter maior pontuação, enfim, tentam conseguir
moradia a qualquer custo.
Ora, o direito a moradia é sim direito social garantido na Constituição
Federal e justamente para cumprir essa obrigação estatal é que o Distrito
Federal dispõe de Lei específica que rege sua política habitacional que é a Lei
Distrital n.3.877/06. Nesse sentido a interpretação da Lei que rege a política
habitacional deve ser abrangente no sentido de se aplicar a toda a família e
não somente ao candidato individualmente. Esse é o espírito da lei: alcançar o
maior número possível de famílias carentes e necessitadas que não tenham casa
própria, mas que possam pagar pelo financiamento, uma vez que o objetivo não é
dar casas e sim oferecer financiamento imobiliário às famílias com renda de até
12 salários mínimos. Assim a Lei Distrital nº. 3.877, de 26 de junho de 2006
estabelece os critérios de seleção, bem como os requisitos de exceção, parar os
candidatos ao programa habitacional, “in
verbis”:
“Art. 4º Para participar de Programa Habitacional de interesse social, o
interessado deve atender aos seguintes requisitos:
I – ter maioridade ou ser emancipado na forma da lei;
II – residir no Distrito Federal nos últimos cinco anos;
III – não ser, nem ter sido proprietário, promitente comprador ou
cessionário de imóvel residencial no Distrito Federal;
IV – não ser usufrutuário de imóvel residencial no Distrito Federal;
V – ter renda familiar de até doze salários mínimos.
Parágrafo único. Excetuam-se do disposto nos incisos III e IV deste artigo as seguintes
situações:
I – propriedade anterior de imóvel residencial de que se tenha desfeito,
por força de decisão judicial, há pelo menos cinco anos;
II – propriedade em comum de imóvel residencial, desde que dele se tenha
desfeito, em favor do coadquirente, há pelo menos cinco anos;
III – propriedade de imóvel residencial havido por herança ou doação, em
condomínio, desde que a fração seja de até cinqüenta por cento;
IV – propriedade de parte de imóvel residencial, cuja fração não seja
superior a vinte e cinco por cento;
V – propriedade anterior, pelo cônjuge ou companheiro do titular da
inscrição, de imóvel residencial no Distrito Federal do qual se tenha desfeito,
antes da união do casal, por meio de instrumento de alienação devidamente
registrado no cartório competente;
VI – devolução espontânea de imóvel residencial havido de Programa
Habitacional desenvolvido pelo Governo do Distrito Federal ou por meio de
instituição vinculada ao Sistema Financeiro de Habitação, comprovada mediante a
apresentação de instrumento registrado em cartório;
VII – nua propriedade de imóvel residencial gravado com cláusula de
usufruto vitalício;
VIII – renúncia de usufruto vitalício.”
Assim, tanto os requisitos de participação do art.4º, da Lei 3877, de 26
de junho de 2006, como os critérios de exceção do parágrafo único se aplicam a
todo e qualquer tipo de família, bem como a todos os membros da família.
Portanto, se aplicam, não só ao candidato, mas a sua esposa ou companheira e,
também, aos filhos desde que maiores e capazes. Esse é o espírito da lei e, também, do
programa habitacional do DF, cujo objetivo é justamente atender ao maior número
possível de famílias de baixa renda e não ao indivíduo sozinho.
Somente assim haverá igualdade na aplicação da lei, na medida em que
para se atender aos requisitos legais todas as famílias devem ter o mesmo
tratamento, independentemente do tipo de família. Esse é o verdadeiro espírito
da lei que não pode ser desprezado em sua aplicação. Enfim, não se pode
discriminar o candidato que vive em união estável daquele que é casado, pois,
ambos vivem em família, e, por consequência devem cumprir os requisitos legais
de seleção dispostos no art.4º da Lei 3877/06 sob pena de infringir não só à
Lei 3877/06, como a lei orgânica do DF, bem como aos Princípios Constitucionais
da Igualdade e da Estrita Legalidade.
Veja que para a Lei 3877/06 a companheira ou esposa é tão importante na
aplicação das normas do programa habitacional que o parágrafo único, do art.7º,
da Lei nº 3877, de 26 de junho de 2006 conferiu prioridade à mulher na
lavratura da escritura e nos registros cartorais, “in verbis”:
“Art. 7º Os contratos
de transferência de posse e domínio para os imóveis urbanos em programas
habitacionais promovidos pelo Poder Público observarão as seguintes condições:
I – o título de
transferência de posse ou de domínio, conforme o caso, será conferido a homem
ou mulher, independentemente de estado civil;
II – será vedada a transferência de posse àquele que, já beneficiado, a tenha transferido para outrem sem autorização do Poder Público ou que seja proprietário de imóvel urbano.
II – será vedada a transferência de posse àquele que, já beneficiado, a tenha transferido para outrem sem autorização do Poder Público ou que seja proprietário de imóvel urbano.
Parágrafo único. Especificamente para lavratura de
escritura, os registros cartoriais deverão constar, preferencialmente, no nome
da mulher.
Importante observar que o inciso V, do art.4º, da Lei 3877/06, também se
refere à família quando diz que para o candidato participar do programa
habitacional deverá ter renda familiar de
até doze salários mínimos. Isso significa que o critério da renda familiar é
auferido com base em todos os membros da família, pois; a renda é familiar e
não individual do candidato. Na realidade o escopo do aludido comando legal
traz o interesse em obstar a duplicidade da obtenção de lotes, pois é uma forma
de limitar o número de inscrições por família e não por indivíduo, evitando-se
que o casal se inscreva mais de uma vez no programa, evitando, assim, a
duplicidade de inscrições o que prejudicaria todo o programa.
Assim, conclui-se que a correta interpretação da lei é no sentido de se
aplicar os requisitos legais a toda a família e não somente ao candidato,
isoladamente, como se ele vivesse sozinho e não em família, sob pena de se
desvirtuar a política habitacional do Distrito Federal que visa atender a toda
a população carente do Distrito Federal.
Esse é o sentido da norma, proporcionar a oportunidade ao
maior número de famílias que possam participar do programa habitacional,
evitando-se, desta maneira privilegiar uns em detrimento de outros.
Em relação à exceção que impede a participação de pessoas
que já tenham sido proprietárias de imóvel no DF, há que se entender que aqui a
lei não especifica o tempo em que o candidato ou sua família tenha sido
proprietário de imóvel, não podendo o judiciário completar a lei e interpretá-la de
forma a inserir o tempo como fator de descriminação, quando não foi este o “discrímen”
utilizado pela lei. Na verdade o discrímen
utilizado pelo legislador é ser ou não proprietário de imóvel e não o
“tempo” em que o candidato tenha sido proprietário. Portanto, não se pode fazer
discriminação onde a lei não o fez sob pena de ferir o Principio da Igualdade
e, assim, beneficiar um só candidato em detrimento de todos os outros, que também
podem ter sido proprietários de imóvel por períodos diversos, menores ou
maiores, mas, igualmente, significativos.
É nesse sentido as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello
no livro “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, editora Malheiros Editores,
3ª edição, página 32, “in verbis”:
“Ainda quando a lei demarca no passado
um tempo, uma data, para discriminar entre situações pretéritas, esta
demarcação temporal é, também ela, mero limite que cincunscreve alguma situação
objetiva diferenciada com base em fato diverso do tempo enquanto tal. Inclusive
neste caso, como em qualquer outro, a data (inicial ou final), nada mais faz
senão recobrir acontecimento ou acontecimentos que são eles mesmos as próprias
raízes da desequiparação realizada. Em conclusão: tempo, só por só, é elemento
neutro, condição do pensamento humano e por sua neutralidade absoluta, a dizer,
porque em nada diferencia os seres ou situações, jamais pode ser tomado como o
fator em que se assenta algum tratamento jurídico desuniforme, sob pena de
violência à regra da isonomia. Já os fatos ou situações que nele transcorreram
e por ele se demarcam, desde que, sobre diferirem entre si, haja correlação
lógica entre o acontecimento, cronologicamente demarcado, e a disparidade de
tratamento que em função disto se adota.”
Nesse sentido não existe nenhuma colisão de valores
constitucionais antagônicos na interpretação das exceções da lei uma vez que o
Princípio da Legalidade (art.37), e o direito social à moradia (art.6º), na
verdade, não se colidem e sim se completam. Ora, na verdade não há colisão de
valores constitucionais na medida em que o Estado não é obrigado a dar moradia
indiscriminadamente a toda população, sem qualquer critério legal. Muito pelo
contrário, o estado está obrigado a seguir rigorosamente a lei, no sentido de
cumprir as metas de sua politica habitacional, para não cometer injustiças e,
assim, atender ao Principio da Legalidade. Portanto, ao cumprir as exigências
legais para selecionar candidatos aptos ao programa habitacional a CODHAB está
tão somente cumprindo a Lei e os Princípios da Legalidade e da Igualdade. Sendo
assim, e havendo colisão de valores constitucionais, há que se entender que
deve prevalecer o Princípio da Legalidade e não o direito à moradia, visto que,
este é pautado pelos limites da Lei 3877/06, da política habitacional do DF e
pelos princípios da Legalidade e da Igualdade.
Assim, pouco importa o tempo em que o candidato, ou alguém
da família, tenha sido proprietário, ou seja, basta que tenha sido proprietário,
nem que tenha sido por 1 só dia, não importa por quanto tempo, uma vez que o
critério da norma é objetivo, não permitindo interpretações subjetivas, sob
pena de violação direta a Lei Federal (art.4, inciso III, da Lei 3877/06), e a
Constituição Federal, na medida em que fere os Princípios da Igualdade e da
Estrita Legalidade. A lei é clara e
única para todos e nesse sentido, não poderá fazer distinção do tempo da
propriedade como critério de interpretação, pois, a interpretação aqui é
objetiva, ou seja, basta que o candidato tenha sido proprietário, não
importando por quanto tempo.
Enfim, somente assim haverá realmente igualdade na aplicação
da lei e na execução do programa habitacional do Distrito Federal como determina a Lei 3877/06, a Lei Orgânica
do Distrito Federal e a Constituição Federal.
Sylvana Machado Ribeiro é advogada em Brasília.