Relações Homoafetivas: União Estável ou Sociedade de Fato?
(por Sylvana Machado Ribeiro)
Certo dia fui despachar com um Juiz de Família, para requerer uma decisão liminar, em uma Ação de Busca e Apreensão de Menor, e escutei o seguinte comentário: “Doutora, não é a justiça que é complicada, são as pessoas!” Eu nunca me esqueci dessa lição e sempre que pego uma nova causa eu me pergunto: até que ponto as relações entre os envolvidos é realmente complicada? Até que ponto a justiça pode, realmente, resolver problemas que, quase sempre, são conseqüências de muitos e muitos anos de frustração e infelicidade?
Nas ações de família nunca sabemos realmente o que causou o problema, nem quando e nem o porquê, mas, de uma coisa sempre temos certeza: as pessoas são complicadas e as relações entre elas mais complicadas ainda. Por isso, nas causas que envolvem questões de família, os magistrados devem ter um preparo psicológico, diferenciado de outros juizes, para julgar os fatos sem se envolver, mantendo uma distância emocional dos jurisdicionados, para não cometer injustiças, e isso não é uma tarefa fácil para a maioria dos juízes, que, na verdade, devem julgar os fatos (o que acontece com as pessoas) e não as pessoas em si (o que elas são em sua essência). E fazer essa distinção, entre julgar os fatos e não as pessoas, é que é o cerne da questão.
Nesse sentido, uma questão que tem despertado muita polêmica, em todos os ramos do direito, é a relativa à natureza jurídica das relações homoafetivas, devido à ausência de lei que regulamenta a matéria. Estaria o judiciário realmente preparado para julgar seus semelhantes, sem se envolver emocionalmente, quando se trata de questões tão polêmicas como essa? Afinal, é muito difícil essa missão da magistratura: julgar as causas, com total imparcialidade, principalmente quando se trata de questões que despertam os mais diversos e complexos sentimentos em vários segmentos da sociedade. Será que realmente a magistratura está preparada para isso?
É preciso entender que ainda não foi definida, nem por lei, nem pela jurisprudência, qual seria a natureza jurídica das relações homoafetivas: se união estável (Direito de Família) ou sociedade de fato (Direito Civil). Assim, na ausência de definição legal ou jurisprudencial sobre a matéria, os juízes seguem julgando, unicamente, com base na analogia, nos princípios gerais de direito e em sua convicção íntima. Assim, as relações homoafetivas ainda não podem ser tratadas como união estável, apesar da tendência ser nesse sentido. Enfim, existe jurisprudência nos dois sentidos, tanto nos Tribunais de Justiça, como no Superior Tribunal de Justiça, que ainda não se posicionou, definitivamente, a respeito da matéria.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, na órbita do direito privado, está um passo atrás do direito público, que, surpreendentemente, já tem decisões importantes que consideram as relações homoafetivas, como união estável, para efeitos dos direitos previdenciários. E isso é uma grande evolução!
Na Justiça do Trabalho as questões que envolvem as relações homoafetivas são geralmente às relativas ao direito previdenciário, mas, não são, por isso, mais fáceis de julgar, na medida em que envolvem, também, o conceito de relação homoafetiva. Assim as questões que dependem da interpretação da natureza jurídica das relações homoafetivas (se são união estável ou se são sociedade de fato) tem sido resolvidas de forma totalmente subjetiva, a critério exclusivo de cada juiz, por ausência de lei específica. Portanto, qualquer julgamento de envolva essa questão terá um cunho totalmente subjetivo, a depender dos valores e conceitos pré-concebidos de cada magistrado. E é aí que mora o perigo: quando temos que julgar somente com base na analogia e em valores subjetivos, corremos o risco de cometer enormes injustiças, em detrimento da verdadeira justiça, que só pode ser feita, realmente, com fundamentação em leis justas e alicerçadas em princípios constitucionais. Se não for assim, corre-se um enorme risco de se cometer verdadeiras “injustiças judicializadas”, ou seja, na falta de lei especifica o que prevalecerá será a analogia, os princípios gerais de direito, e a opinião pessoal e subjetiva de cada magistrado, e isso causa uma enorme insegurança jurídica.
Uma questão muito importante, para a magistratura trabalhista, é a relativa aos direitos previdenciários dos casais homoafetivos, ou seja, seria legal deixar pensão ao companheiro homossexual, sem ferir a Constituição Federal? Estariam os critérios da legislação previdenciária sendo preenchidos em consonância com o conceito de união estável expresso na constituição federal? Ou a lei estaria ferindo a própria Constituição Federal?
Sobre esse assunto temos duas decisões do Superior Tribunal de Justiça que apontam no sentido de se reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo para efeitos previdenciários. A primeira decisão foi em 13/12/2005, no Recurso Especial 395.904-RS, quando o Ministro Relator Hélio Quaglia Barbosa decidiu que é devida a concessão de pensão por morte ao companheiro homossexual, desde que, preenchidas as exigências da Lei n. 8.213/1991, comprovadas a qualidade de segurado do de cujus e a convivência afetiva e duradoura entre o falecido e o autor.
A segunda, em 04/02/2010, no Resp 1.026.981-RJ, que revolucionou o entendimento anterior, quando a Ministra Relatora Nancy Andrighi entendeu que “comprovada a existência de união afetiva entre pessoas do mesmo sexo, é de se reconhecer o direito do companheiro sobrevivente de receber benefícios previdenciários decorrentes do plano de previdência privada do qual o falecido era participante, com os idênticos efeitos da união estável, ainda que não esteja expressamente inscrito no instrumento de adesão, isso porque a previdência privada não perde seu caráter social só pelo fato de decorrer de avença firmada entre particulares. Assim, se por força do art. 16 da Lei n. 8.213/1991, a necessária dependência econômica para a concessão da pensão por morte entre companheiros de união estável é presumida, também o é no caso de companheiros do mesmo sexo, diante do emprego da analogia que se estabeleceu entre essas duas entidades familiares.” Esse julgamento, no entanto, ainda não terminou, e no dia 08/02/2011, em Questão de Ordem, a Turma deliberou remeter os autos, à Segunda Seção, para o julgamento da quaestio relativa ao reconhecimento da união homoafetiva com os mesmos efeitos jurídicos da união estável.
Importante perceber, assim, que, nas duas decisões do Superior Tribunal de Justiça, existe uma evolução do direito previdenciário, em relação à lei civil, que permanece inerte, em relação ao reconhecimento das uniões homoafetivas, como união estável. Assim, o direito previdenciário está evoluindo, à frente do direito privado, no sentido de ser atribuída normatividade idêntica às uniões estáveis, aos relacionamentos afetivos entre pessoas do mesmo sexo, com os efeitos jurídicos daí derivados, evitando-se que, por conta do preconceito, sejam suprimidos direitos fundamentais aos casais homoafetivos.
Mas, felizmente, hoje, toda essa polêmica está ficando no passado, pois; a partir do histórico julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, no último dia 05/05/11, não há mais dúvidas de que os casais que vivem em União Estável, sejam de sexos diferentes ou do mesmo sexo, têm os mesmos direitos civis. Em outras palavras, o Supremo decidiu, em decisão unânime e com efeitos vinculante e erga omnes, que as Uniões Homoafetivas devem ser equiparadas às Uniões Estáveis, para todos os efeitos legais. Assim, a partir de então, os casais homoafetivos passam a ter os mesmos direitos assegurados aos casais heterosexuais que vivem em União Estável, sejam eles, direitos civis, de família, previdenciários, públicos, ou quaisquer outros que venham a pleitear, com base nessa equiparação reconhecida pela mais alta corte de Justiça de nosso país. Ou seja, o Supremo reconheceu que o direito de amar, ser amado, constituir família, viver em convivência marital, adotar crianças, separar, brigar, reconciliar, deixar herança, pensão, enfim, o direito de amar e ser amado, de sofrer e de ser feliz é amplo, irrestrito e não admite qualquer tipo de preconceito. Enfim, todos têm o direito de escolher com quem viver e ser feliz, com todas as conseqüências jurídicas que isso possa significar.
Fica aqui uma questão para reflexão: até que ponto podemos diferenciar os direitos de casais heterossexuais que vivem em união estável, dos casais homoafetivos? Pode mesmo o Estado impedir que pessoas convivam em união estável e adquiram direitos decorrentes dessa convivência, simplesmente, por que não são de sexos diferentes? Penso que não, pois, o Estado não pode interferir na vida privada das pessoas, principalmente, em relação a questões tão intimas, como o relacionamento de pessoas que vivem em “união estável”, independentemente do sexo. Afinal, o direito de conviver é um dos mais importantes na formação da personalidade das pessoas que, a depender de suas escolhas, podem se tornar felizes ou, totalmente infelizes. E a felicidade, definitivamente, não pode ser julgada por ninguém.
(Artigo publicado na Revista da ANAMATRA, ano XXIII, nº 61, mês de junho de 2011, páginas 32 a 34)